domingo, 8 de março de 2009

Na vida de Agripino: memórias de uma canção

“Não tem mais ninguém que faz aquilo que eu faço”. Disse-nos um senhor com os pés quase descalços. Usa uma sandália desgastada e em tiras de couro, sendo algumas arrebentadas.

Era mais um dia de calor abrasador, estamos sentados embaixo da sombra feita pela única árvore e Seu Agripino nos faz mergulhar em suas histórias e músicas. Ele tem 89 anos; quando criança aprende a tocar e a fazer a viola-de-cocho pantaneiro. Instrumento regional do Mato Grosso do Sul. Interrompendo-nos, para completar a cena, traz a viola.

O seu pai rouba a sua mãe para se casarem. Fugiram para Poconé, próxima a Cuiabá, onde nasceu Agripino Soares de Magalhães; no entanto ele é registrado pelos seus pais em Várzea Grande. Lá aprende a tocar e a fazer a viola. Aos 13 anos ele foge de casa e vai morar em Corumbá. “Morava no sítio em Paiangé, pertinho da cidade, eram quatro léguas daqui. Lá eu não aprendi a ler e escrever, eu aprendi a trabalhar; cortar com machado, cuidar de lavoura e plantação. Eram os serviços que tinham”.

É ele quem traz de Cuiabá os dois estilos de dança que saem da viola-de-cocho: o “cururu” e o “siriri”. Ele é o “cururueiro” mais famoso do país. Nem mesmo seus 10 filhos, oito meninos e duas meninas, aprenderam a tocar ou a fabricar o instrumento. “O mais velho tem 68 anos e o mais novo 43 anos”. Todos nasceram de Dona Maria Madalena de Magalhães, com quem é casado há mais de 60 anos.

O nome “cururu” se dá à técnica da escavação de caixas de ressonância da viola. Orgulhoso, ele lembra as viagens de ônibus que fez e ainda faz com sua banda os “Cantadores de Cururu”. Aliás, há mais três integrantes na banda, eles já se apresentaram em São Paulo e em outros estados.

A idade dele não é um estorvo para que prossiga com o canto e o dedilhar dos dedos nas cordas da viola. No dia anterior havia se apresentado e com dificuldade lembrou em qual festa havia tocado. “Dia de São Gonçalo, 10 de janeiro.”

As festas folclóricas que ocorrem durante o ano contam com o som estridente da viola. Uma delas é a religiosa e profana festa junina, onde ocorre o tradicional banho de São João. Aqui sete imagens de santos são carregadas pelos corumbaenses rio abaixo. Quando elas se encontram, são feitas reverências. Em seguida são molhadas relembrando o batismo de Jesus Cristo. Vale ressaltar que esse costume de banhar o santo ocorre nas casas das famílias e é passado de geração para geração.

O desafinado das cordas vai acompanhando suas frases, que nos revela: “A viola de cocho é criada assim: mandam o rapaz cortar um pau para fazer cocho para colocar comida para as vacas dele. Mas ele corta muito comprido, sobra um pedaço e com aquele pedaço ele faz uma viola. As primeiras são furadas, agora não é mais. Agora ela é oca, leve”. Desse modo podemos fazer a associação de onde surge o nome do instrumento; o Cocho é o recipiente que deposita o alimento do gado.

“A viola aqui é feita de uma madeira de Cuiabá, chama-se Timbaúba. E as cordas eram feitas de tripa de macaco. Mas esse costume foi extinto. Há excesso de violeiro e cento e poucos caçadores de cururu que matam macacos e acabam com eles. Então o governo resolve proibir, isso já faz 30 anos. E daí passaram a fazer cordas de nylon. Essa é de nylon”.

Nas paredes de sua casa fotografias antigas com D. Maria e algumas matérias que saem sobre Seu Agripino em jornais e revistas, uma delas emoldurada nos chama a atenção. Era uma matéria de 2006 do jornal “Folha de S. Paulo”, com o título; “Viola-de-cocho fabricada seguindo superstições dá o tom da música regional”. As lembranças dele revelam-se através dos olhos azuis, que poderia ser de uma doença da velhice ou uma miscigenação de europeus, e em contraste com a pele negra os olhos brilhavam mais. Nos dedos há dois anéis grandes, como de um fazendeiro. Um é prateado; o outro, dourado, ambos com pedras vermelhas.

O som que vem da viola é acompanhado do ganzá, o tamborim e o mocho. Seu Agripino nos leva o ganzá feito de dois materiais; um pedaço é um osso; o outro, um bambu. O som surge do raspar entre as duas peças. E a viola tem uma única saída de som, a sonorização dela é uma batida oca. Pede para colocar o ganzá no ombro e tocar com ele, enquanto canta uma das músicas. Por causa desse som estridente, pudemos tirar uma letra mais ou menos assim:
“Moça morena, cor de canela. Moça morena , cor de canela. Entra na cozinha que eu te espero na janela. (3x)Moça morena, cor de canela”.(2x)

Esse é o ‘siriri’, é mais agitadinho, comenta. E canta o “cururu”:

“Meus senhores dão licença ali, seu Taquera me dá. Um dia eu tô imaginando eu tô querendo mudar de terra, mas depois eu penso bem na minha ingratidão.Abandonar a minha terra, onde eu nasci e me criei.Fui para a fazenda pra viver?!

Os senhores me dão licença.E lição ´pra mim´ brincar, Um dia eu tô imaginando eu tô querendo mudar de terra. Mas depois eu penso bem, na minha ingratidão. Abandonar a minha terra, onde eu nasci e me criei”.

As letras são melancólicas e representam o cotidiano do homem do campo. Quando improvisadas, são mostras da história cantada da região e dos melhores “cururueiros”.

Na dança do “cururu” apenas os cavaleiros dançam e no “siriri” eles têm nas mãos uma dama. As batidas de palmas e pés funcionam como cortejo da música. As mulheres e homens devem usar o figurino apropriado para a dança. “As mulheres, um vestido com a saia longa e um casaco de manga ¾. Os homens uma camisa branca com manga comprida, a calça preta com uma faixa na cintura e o chapéu panamá. Eu tenho a roupa aqui em casa”.

Para acharmos a casa de Seu Agripino, seguimos as coordenadas: casa de número 90 na Rua Beira Rio. Em frente à simples casa há uma creche municipal fundada por ele, onde há aulas para crianças carentes. Ele também foi o presidente do bairro durante seis anos.

No moinho do vento, espaço de arte e museu localizado no porto, ele dá aula de dança para as moças e rapazes. Seu salário no moinho é mensal e outra fonte de renda dele são as violas que constrói artesanalmente, o preço do instrumento varia de 220 a 240 reais. Demora uma semana para fabricar cada viola. “Tem gente que não quer tocar, tem vergonha. Aqui é a cidade do fim do mundo, mas é uma cidade ótima para se viver, hoje já ‘tá’ cheio de gente. Quando eu cheguei aqui no bairro só tinha eu como morador.”

*By Clarissa Ludwig, do livro "Nos Trilhos da Fronteira".

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